Cientistas desenvolvem técnica de reparo no DNA que dispensa a necessidade de deletar sequências e, assim, evita o risco de surgirem mutações.
Principal aposta da medicina para correção de erros genéticos e cura de doenças crônicas, a técnica de edição CRISPR-Cas9 tem, porém, uma limitação. Como, para retirar as sequências defeituosas, é preciso cortar um pedaço do DNA, isso abre caminho para a formação de novas mutações. Por isso, laboratórios de todo o mundo estão atrás de um aprimoramento que permita alterar o que está errado sem, contudo, mexer na estrutura de dupla hélice. Foi o que conseguiu agora uma equipe do Instituto Salk, da Califórnia, que descreveu o novo método na edição de ontem da revista Cell. Os cientistas testaram, com sucesso, a adaptação em ratos com doença renal aguda, diabetes e distrofia muscular.
O CRISPR, sigla em inglês para “grupos de repetições palindrômicas curtas regularmente espaçadas”, é, na realidade, um mecanismo natural do qual as bactérias lançam mão há bilhares de anos para se proteger de infecções virais. Ela incorpora uma cópia do DNA estranho e cria um registro de todos que tentam invadi-la. Cada vez que um novo micro-organismo intruso é identificado, a bactéria recorre a esse registro e usa isso para destruí-lo. Nos últimos anos, cientistas começaram a adaptar o mecanismo para a edição do genoma, com potencial de curar doenças e aperfeiçoar organismos — incluindo o humano.
Porém, há um risco grande de que o sistema CRISPR-Cas9 corte e troque de lugar as sequências erradas, introduzindo novas mutações. “A taxa de erro é, às vezes, de 10 a 20%”, conta Anatoly Kolomeisky, professor de química da Universidade Rice, que não está envolvido no estudo da Cell. Recentemente, ele ajudou a desenvolver um modelo computacional para identificar o mecanismo pelo qual as proteínas CRISPR-Cas9 encontram os alvos da edição. “Nos casos de erros, temos duas hipóteses: uma é a de que os vírus mutem muito rápido e talvez o pedaço do genoma que a bactéria estava tentando editar alvos que se modificaram ligeiramente. A outra é de que, como existem proteínas capazes de corrigir erros, então, se não houver tantos cortes errados, o sistema pode suportar isso”, afirma.
Porém, se a ciência pretende usar o mecanismo justamente para corrigir e curar doenças, esses erros não podem ocorrer. “Embora muitos estudos tenham demonstrado que o CRISPR-Cas9 pode ser uma poderosa ferramenta para terapia genética, há preocupações crescentes sobre mutações não desejadas geradas pelas quebras nas duplas hélices. Mas fomos capazes de contornar esse problema”, diz o principal autor do estudo publicado ontem, Juan Carlos Izpisua Belmonte, professor do Laboratório de Expressão Genética do Instituto Salk.
Condutora
No sistema original, uma enzima chamada Cas9 — a “tesoura”, pois é ela que corta o DNA — é adicionada a um RNA guia, que, como o nome diz, conduzirá a ferramenta de edição até o local alvo do genoma. Recentemente, alguns pesquisadores começaram a usar uma forma da enzima, a dCas9, que, embora possa identificar a sequência, é incapaz de cortá-la. Em vez disso, ela é associada a fatores de ativação transcripcionais, moléculas que funcionam como um “interruptor”, ligando e desligando os genes.
Essa inovação foi comemorada no campo científico, mas ainda restava um problema a resolver. A dCas9 ficou grande demais para ser colocada dentro dos adenovírus (AAVs), usados como meio de transporte da ferramenta até o DNA. O que a equipe de Belmonte fez foi encontrar uma forma de levar a enzima e o RNA mensageiro às sequências alvo, reorganizando as peças do maquinário. Para isso, utilizaram-se dois adenovírus. Um transportou a dCas9. No outro, viajaram o RNA e os “interruptores”. “Tivemos que melhorar o RNA guia para ter certeza de que todas as peças terminariam no locar desejado, e que o gene alvo fosse fortemente ativado”, diz Belmonte.
“Basicamente, usamos um RNA guia modificado para levar o ativador transcriptacional para trabalhar com a Cas9 e conseguimos levar esse complexo à região do genoma em que estávamos interessados”, resumiu, em nota, Hsin-Kai Liao, coautor do artigo da Cell e pesquisador do laboratório. “O complexo chega à parte alvo do DNA e promove a expressão do gene, sem fazer cortes. Técnicas similares poderão ser usadas para, virtualmente, ativar qualquer padrão genético, sem o risco de introduzir mutações perigosas”, afirma Fumiyuki Hatanaka, que também assina o artigo.
Para testar a viabilidade da técnica, os cientistas fizeram demonstrações em modelos animais. Em uma delas, conseguiram reverter danos renais agudos em ratos cujos genes haviam sido silenciados ou danificados propositalmente no laboratório. O maquinário também foi usado para induzir células do fígado a se diferenciarem em estruturas pancreáticas, que produzem insulina e, assim, parcialmente recuperar o organismo de um rato com diabetes 1. Por fim, a equipe conseguiu que o complexo recuperasse o crescimento e a função muscular em modelos de cobaias com distrofia muscular, doença causada por uma mutação genética. “Em vez de tentar corrigir o gene mutado, aumentamos a expressão de outros genes que fazem o mesmo papel. Assim, eles sobrepõem os efeitos do gene danificado. Não estamos corrigindo a variante, ela ainda está ali, mas estamos trabalhando no epigenoma (a expressão genética) e isso, nos testes, foi suficiente, por exemplo, para recuperar a função muscular dos ratos”, explica Belmonte.
Como a técnica não provocou novas mutações, ela foi considerada segura, inicialmente. Agora, os pesquisadores estão desenhando outros estudos para reforçar se, de fato, será viável. “Nós ficamos muito animados com os resultados que tivemos com os animais”, diz Fumiyuki Hatanaka, explicando que outras doenças com fundo genético poderão ser revertidas pelo complexo. Para o chefe do laboratório, é possível que, no futuro, a Cas9 “turbinada” pelos interruptores possa tratar, por exemplo, distúrbios neurológicos, como Alzheimer. Até hoje, não houve sucesso nas tentativas de edição do genoma em células cerebrais, mas Juan Carlos Izpisua Belmonte acredita que seja uma questão de tempo.
Fonte: Ciência e Saúde do CB-postado em 08/12/2017 , por Paloma Oliveto