A Doença de Machado-Joseph (DMJ), também conhecida por ataxia espinocerebelosa do tipo 3 ou SCA3, é uma neuropatologia rara, de origem genética, que se manifesta por uma progressiva ataxia cerebelosa, traduzida na crescente perda do controlo muscular e da coordenação motora nos membros superiores e inferiores, oftalmoplegia, perturbações da visão e dificuldades na fala e no engolir.
A doença é causada por uma expansão anormal de repetições do trinucleótido "CAG" no gene ATXN3, situado na parte longa do cromossoma 14. A anomalia traduz-se na codificação de uma forma anormal da proteína nuclear ataxina, cuja acumulação no núcleo celular induz degenerescência dos neurónios da região do tronco encefálico, designada porrombencéfalo.
Como o cromossoma 14 é autossómico e a mutação genética é dominante, a doença é transmitida com igual probabilidade pelos dois progenitores e manifesta-se da mesma forma em ambos os sexos. A doença manifesta-se indiferentemente em indivíduos heterozigóticos e homozigóticos, dependendo a severidade do número de repetições anómalas.
Algumas das manifestações da afeção, entre as quais a descoordenação motora e a rigidez postural, fazem com que a Doença de Machado-Joseph seja por vezes confundida com embriaguez ou doença de Parkinson. A doença manifesta-se em geral entre adultos, dos 35 aos 50 anos de idade, surgindo mais tarde ou mais cedo conforme a severidade da mutação. A prevalência a nível global é estimada entre 0,3 a 2 pessoas acometidas por cada 100 mil adultos, mas na ilha das Flores (Açores) afeta aproximadamente 1 em cada 140 adultos, sendo aí popularmente conhecida por doença do tropeção.
Etiologia
A Doença de Machado–Joseph (DMJ) é um tipo de degeneração espinocerebelosa, sendo a causa mais comum de ataxia com origem autossómica dominante. A doença causa oftalmoplegia, dismetria e ataxia sensorial mista e cerebelosa, com sintomas que incluem défices de memória, espasticidade, disartria, dificuldades na articulação de sons e na deglutição, fraqueza nos braços e pernas, descoordenação motora, micção frequente e movimentos involuntários dos olhos (nistagmo).
Outras manifestações da doença incluem distúrbios do sono, como o transtorno comportamental do sono REM e síndrome das pernas inquietas. Contudo, o principal sintoma da ataxia é a alteração do equilíbrio e da coordenação motora, de que resulta o paciente ter dificuldades em caminhar e segurar objetos. O quadro é leve no início, agravando-se com o passar do tempo em resultado do carácter degenerativo progressivo da doença. Com a evolução da ataxia, podem ser percebidos sintomas como alterações na fala, dificuldades em engolir, visão dupla e parkinsonismo, que são outros sintomas semelhantes aos da Doença de Parkinson.
O aparecimento dos sintomas pode ocorrer desde a adolescência, com intensificação lenta ao longo de anos, levando à paralisia. Apesar da severidade dos sintomas a nível motor, as funções intelectuais permanecem em geral inalteradas.
Patofisiologia
A doença é causada por uma mutação no gene ATXN3, localizado no cromossoma 14q, que se traduz em repetições longas e irregulares do código "CAG" (normalmente o número de cópias é entre 13 e 41) e na consequente produção de uma proteína mutante designada por ataxina-3. Nas células afetadas, esta proteína acumula-se e forma corpúsculos de inclusão. Postula-se que estes agregados insolúveis interferem com a atividade normal do núcleo celular e induzem a degenerescência e morte da célula.
A DMJ é uma doença autossómica dominante, o que significa que a transferência do gene por qualquer dos progenitores resulta sempre num indivíduo que, mais tarde ou mais cedo, apresentará sintomas da doença. A DMJ é assim uma doença crónica hereditária dominante, pelo que se um dos progenitores for portador do gene deficiente a probabilidade de transmissão é de 50%.
A ponte (uma estrutura localizada no tronco cerebral) é uma das áreas afetadas pela DMJ. O corpo estriado (a área cerebral ligada ao equilíbrio e à coordenação motora) é também afetada pela doença, o que pode explicar as duas principais afeções motoras causadas pela DMJ: a contração e torção dos membros e os movimentos abruptos e irregulares.
Prognose e tratamento
A esperança de vida após o diagnóstico da doença varia em função da idade do paciente e da severidade dos sintomas. Pacientes com formas ligeiras da doença apresentam esperança de vida normal para o seu grupo etário. Os casos mais severos e mais precoces da doença apresentam forte redução da esperança de vida, que nos casos extremos se reduz aos 35 anos de idade. A causa de morte nos casos de mortalidade precoce é em geral pneumonite por aspiração que degenera em broncopneumonia ou pneumonia.
Não se conhece tratamento que permita a cura da Doença de Machado-Joseph, mas estão disponíveis diversas terapias que permitem mitigar muitos dos seus sintomas, em particular os ligados às disfunções motoras.
A espasticidade pode ser reduzida com recurso a drogas antiespasmódicas, com destaque para o baclofeno. O parkinsonismo pode ser reduzido com recurso a uma terapia com base na levodopa e os distúrbios visuais resultantes da diplopia podem ser minorados com o recurso a lentes prismáticas.
O recurso a técnicas de fisioterapia pode ajudar os pacientes, particularmente quando complementado pela prescrição de ajudas técnicas à mobilidade, por forma a aumentar a sua independência. A utilização de técnicas de correção postural e a prescrição de exercícios destinados a manter a mobilidade articular e melhorar a condição física geral, pode melhorar a qualidade de vida dos doentes e contribuir na prevenção de quedas e outros acidentes de origem motora de que resultem ferimentos. A correta utilização de muletas, andarilhos e cadeiras de rodas pode ser um importante fator na manutenção da autonomia pessoal e na melhoria da qualidade de vida dos doentes.
Alguns pacientes apresentam dificuldade em engolir (afagia) em geral acompanhada de problemas na articulação da fala (afasia), pelo que o recurso às técnicas da terapia da fala e da fisioterapia respiratória podem ser valiosas para a manutenção da capacidade de comunicação e de engolir. A afagia pode ser um das consequências mais graves da doença, levando, nos casos mais graves, ao desenvolvimento de pneumonia por aspiração, um das causas mais frequentes de morte prematura.
Diagnóstico e classificação
A DMJ pode ser diagnosticada pelos respetivos sintomas, em particular quando associada a famílias em que existe um historial da presença da afeção. Para o efeito, os clínicos inquerem sobre a existência de casos na família do potencial paciente, sintomatologia que apresentaram, idade de surgimento dos sintomas e sua severidade. Sendo uma doença autossómica, isto é ligada a um cromossoma independente do sexo, é significativa a história familiar de ambos progenitores. Por ser uma doença ligada a um gene dominante, há uma forte probabilidade da doença já se ter manifestado em várias gerações da família.
A diagnose pré-sintomática da DMJ pode ser feita recorrendo a um teste genético que permite a deteção direta da mutação responsável pela doença.
O teste destinado à deteção da mutação causadora da doença está disponível desde 1995 e permite detetar o número de repetições do tripleto "CAG" na região do cromossoma 14, que codifica o gene ATXN3.
Considera-se que o teste é positivo, isto é que existe o potencial para o desenvolvimento da DMJ, quando a região contém de 61 a 87 repetições, comparadas com as 12 a 44 repetições presentes em indivíduos saudáveis. Uma limitação do teste é a incerteza gerada quando o número de repetições de "CAG" no indivíduo testado fica entre o valor considerado normal e o valor conhecido como patogénico, isto é quando o número se situa no intervalo das 45-60 repetições, situação em que não é possível afirmar com certeza se o indivíduo é ou não portador da deficiência genética que pode levar ao aparecimento posterior de DMJ ou de o transmitir aos seus descendentes.
Alguns eticistas têm usado a Doença de Machado–Joseph como uma afeção paradigmática para discutir os direitos da comunidade de pacientes sobre o controlo da sua doença, em particular em matérias como a investigação genética e a realização de testes de despistagem precoce.
Como não existe disponível qualquer terapia capaz de prevenir o aparecimento dos sintomas da doença em indivíduos portadores do gene, é pertinente a discussão ética sobre a pertinência da realização dos testes genéticos em indivíduos assintomáticos. Como benefícios que justificarão a realização do teste aponta-se a redução da ansiedade e incerteza e o aumento da capacidade de planear o futuro. Entre as desvantagens inclui-se a antecipação de resultados negativos e as dificuldades do indivíduo em se adaptar a esse resultado.
Em função da idade da primeira manifestação dos sintomas e da sua severidade, são reconhecidos cinco subtipos da Doença de Machado-Joseph. Os subtipos ilustram a grande diversidade de sintomas que os pacientes apresentam, mas a integração de um indivíduo em qualquer dos tipos apresenta significado clínico limitado. Os subtipos são os seguintes:
•Tipo I — corresponde à forma mais precoce da doença, com os sintomas a manifestarem-se entre os 10 e os 30 anos de idade. Este subtipo corresponde a cerca de 13% dos indivíduos, apresentando em geral desenvolvimento rápido, acompanhado de severa rigidez muscular e distonia.
•Tipo II — é o subtipo mais comum, correspondente a cerca de 57% dos indivíduos com DMJ. Neste subtipo, os sintomas manifestam-se entre os 20 e os 50 anos de idade, caracterizando-se por uma severidade e velocidade de desenvolvimentos intermédias. Os sintomas incluem espasticidade, respostas reflexas exageradas, postura espástica, ataxia e afeção dos circuitos neuronais motores superiores.
•Tipo III — é o subtipo que engloba os casos de DMJ de progressão lenta. Os pacientes incluídos neste grupo em geral desenvolvem os sintomas entre os 40 e os 70 anos de idade e representam cerca de 30% dos doentes com DMJ. Os sintomas incluem espasmos musculares, formigamento, cãibras e sensações desagradáveis, como dormência, dor nos pés, mãos e membros. Os pacientes podem desenvolver atrofia dos grupos musculares afetados. Quase todos os pacientes experimentam um declínio na acuidade visual, incluindo visão turva, diplopia, incapacidade de controlar os movimentos dos olhos e perda da capacidade de distinguir as cores. Alguns pacientes também apresentam sintomas parkinsonianos.
•Tipo IV — é caracterizado pela presença de sintomas parkinsonianos, que respondem particularmente bem ao tratamento com levodopa.
•Tipo V — apresenta um quadro sintomático muito semelhante à paraplegia espástica hereditária, mas não existem provas concludentes da relação entre este subtipo de DMJ e aquela doença.
História
A doença foi identificada pela primeira vez em 1972 em indivíduos da comunidade açoriana emigrada na Nova Inglaterra (EUA). O nome da patologia, ao contrário do que é habitual, não derivou do nome dos investigadores que a descobriram, mas sim do apelido dos patriarcas das famílias em cujos membros a afeção foi descrita. Estes dois homens, William Machado e Antone Joseph, eram açorianos emigrados em Massachussets, um grupo étnico no qual a doença apresenta a máxima prevalência, em particular entre a população da ilha das Flores, na qual cerca de 1 em cada 140 indivíduos é diagnosticado com DMJ.